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A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou, nesta quarta-feira (27), o projeto que regulamenta os direitos originários indígenas sobre suas terras. Entre as principais mudanças, o texto (PL 2.903/2023) só permite demarcar novos territórios indígenas nos espaços que estavam ocupados por eles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal — tese jurídica que ficou conhecida como marco temporal para demarcação de terras indígenas. A proposta segue para o Plenário em regime de urgência.

Após quatro horas de reunião, o relatório do senador Marcos Rogério (PL-RO) foi aprovado por 16 votos favoráveis e 10 contrários. Marcos Rogério rejeitou, em seu complemento ao voto, todas as 39 emendas apresentadas e manteve o texto na forma que veio da Câmara dos Deputados. O mesmo ocorreu na aprovação do PL na Comissão de Agricultura (CRA), em agosto. Para o relator, o projeto é de interesse nacional:

— Não é um tema do governo ou da oposição, é um tema de interesse nacional. Nós temos posições que podem até divergir, mas há uma compreensão de que esse é um tema do Brasil.

Critérios para demarcação

De acordo com o projeto, para que uma terra seja considerada “área tradicionalmente ocupada” pelos indígenas, será preciso que, além de comprovar que vinha sendo habitada pela comunidade indígena em 5 de outubro de 1988, era usada de forma permanente e utilizada para atividades produtivas. Também será preciso demonstrar que essas terras eram necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar.

Para o líder do governo no Senado, senador Jaques Wagner (PT-BA), há dificuldade em identificar as terras ocupadas naquela época. Wagner instruiu a base governista a votar contra o relatório de Marcos Rogério.

A senadora Zenaide Maia (PSD-RN) afirmou que há casos em que os índios mudaram de local forçadamente.

— Todos sabemos que muitas comunidades se deslocaram por pressão do garimpo ilegal. Quantos outros não fizeram isso? — disse a senadora, contrária à proposta.

No caso de o local pretendido para demarcação não cumprir esses requisitos, fica descaracterizada a ocupação permanente exigida em lei, exceto se houver conflito pela posse da terra na mesma data. Assim, terras não ocupadas por indígenas e que não eram objeto de disputa na data do marco temporal não poderão ser demarcadas.

Além das áreas tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, a proposta também altera as chamadas “áreas reservadas”. Elas continuarão sendo propriedade da União, mas serão geridas pelos indígenas nelas instalados, sob supervisão da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Já as terras adquiridas são aquelas que vierem a ser compradas ou recebidas em doação, ou por qualquer outra forma prevista na legislação civil, e serão consideradas propriedade particular.

Uso da terra

O projeto prevê a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas. A celebração de contratos com não indígenas dependerá da aprovação da comunidade, da manutenção da posse da terra e da garantia de que as atividades realizadas gerem benefício para toda a comunidade. O projeto também altera a Lei 11.460, de 2007, para permitir o cultivo de organismos transgênicos em terras indígenas. Poderá haver exploração do turismo, desde que organizado pela comunidade indígena, ainda que em parceria com terceiros. A pesca, a caça e a coleta de frutos serão autorizadas para não indígenas exclusivamente se estiverem relacionadas ao turismo.

Para o senador Marcio Bittar (União-AC), os indígenas não desejam mais terras demarcadas e devem ter possibilidade de explorar economicamente o solo.

— O problema hoje da comunidade já não é mais com terra, é ser dono da terra. Quando eles querem usar o subsolo, eles são proibidos. Quando querem transformar 2% da sua terra em lavoura para sobreviver, eles são proibidos. O que mais ouço são índios dizendo que não aceitam mais ser tutelados.. [Foram propostos] votos em separado querendo decidir pelo índio, se ele pode ou não plantar transgênicos… deixa eles decidirem — disse o senador, se referindo a emendas que buscavam retirar do projeto a possibilidade de uso de insumos transgênicos.

O senador Weverton (PDT-MA) criticou a forma que como as desapropriações de terras são feitas no Maranhão. Segundo ele, pequenos e médios produtores ficam sem sustento após serem retirados de terras que são demarcadas. Ele também defendeu o uso da terra pelos índios.

— A cidade de Amarante está passando por problemas seríssimos. Convivo com as comunidades indígenas de lá. Eles dizem “não queremos mais terra, aqui o problema é mais educação, políticas que não temos aqui”. Se estou em um local, e é terra indígena, está pacificado. Mas onde estou produzindo, gerando renda, criando minha família, não pode o antropólogo chegar amanhã e me tirar de lá porque decidiu que vai ser uma nova comunidade. E todos sabem que sou de esquerda, mas sou maranhense e eu vejo o que está acontecendo lá — disse Weverton.

Já a senadora Augusta Brito (PT-CE) afirmou que no Ceará as comunidades indígenas têm a demarcação de suas terras como principal demanda.

— Com relação com os povos indígenas com que tenho contato no Ceará, a primeira reivindicação se trata da demarcação do seu território. Não acredito que seja diferente do resto do país. Algumas [opiniões] diferentes podem até existir, mas a grande maioria [pede como] primeiro ponto de reconhecimento histórico a demarcação do território. Através desse marco [temporal], não vejo a justiça sendo feita.

O senador Humberto Costa (PT-PE) também criticou as possibilidades de exploração econômica por ser um “total desvirtuamento do que é o debate sobre os direitos que os indígenas têm”. O senador teve três emendas rejeitadas pelo relator.

Destaque

O projeto prevê que o Estado só pode ter contato com indígenas isolados para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública. O Partido dos Trabalhadores (PT) pediu destaque (votação separada) do trecho para retirar a “intermediação estatal de utilidade pública” e exigir que o auxílio médico seja apenas em risco iminente, em caráter excepcional e mediante plano específico elaborado pela União. A alteração foi rejeitada pelo colegiado.

A emenda proposta também esperava retirar do projeto a previsão de que entidades particulares, internacionais ou nacionais, poderiam ter contato com essas comunidades, caso sejam contratadas pelo Estado.

Votos em separado

Senadores contrários ao texto acusam a proposta de diminuir direitos indígenas e de ser inconstitucional, e alguns apresentaram votos em separado, que não chegaram a ser votados. O senador Alessandro Vieira (MDB-SE) apresentou substitutivo (texto alternativo ao projeto), mas, com a aprovação do relatório de Marcos Rogério, a proposta alternativa foi prejudicada. A emenda substitutiva previa a necessária consulta prévia das comunidades indígenas em assuntos de seu interesse e a transparência dos processos demarcatórios.

— A primeira premissa [errada] é que a Constituição criou direitos em favor dos indígenas, anulando justos títulos preexistentes sobre suas terras. Há aqui uma nítida inversão. Os direitos dos indígenas são originários, isso é, precediam qualquer titulação sobre suas terras. Os títulos dados sobre o que já pertencia a outros são nulos de pleno direito — afirmou Alessandro.

O voto em separado do senador Fabiano Contarato (PT-ES) pela rejeição do projeto também foi prejudicado. Segundo o líder do PT no Senado, a proposta, da forma como foi aprovada, altera a posição do Estado com relação aos indígenas que vivem sem contato com a civilização e trará riscos a essas populações.

— Esse projeto não trata apenas do marco temporal. Ele fala em aculturamento da comunidade indígena. Ele assegura o contato com os povos isolados. Isso é um risco para a saúde e a vida dos indígenas que ali estão. Isso é um verdadeiro ataque aos povos indígenas. Respeitar os povos indígenas é dizer “não” a esse marco temporal, à aculturação, ao contato aos povos isolados.

Para o senador Dr. Hiran (PP-RR), no entanto, o isolamento agrava as condições de saúde dos indígenas, como no caso de reservas indígenas no Norte que possuem “a maior área endêmica de uma filariose (doença parasitária) que é oncocercose, que causa cegueira irreversível aos índios que lá estão”.